Enola Holmes Netflix Crítica

setembro 26, 2020

 Enola Holmes apresenta-nos um filme jovem, fresco, sedutor e onde a mulher fatal, não é tanto um aperitivo para ser devorado, mas a força catártica de toda a narrativa. Enola, ao contrário significa "sozinha" (alonE), mas de certa forma, todas nos sentimos representadas, nestes que têm sido tempos de ouro, na representatividade feminina em filmes de ação.

A meio de uma revolução feminina (alargamento do direito de voto às mulheres), somos deixados no seio daquilo que já foi a casa de família dos Holmes.  No seu aniversário, Enola Holmes, a irmã mais nova de Sherlock e Mycroft Holmes, vê-se, subitamente sozinha, quando a sua mãe desaparece. Para trás fica Enola, numa bolha de vivências muito pouco convencionais, para uma jovem senhora do século XIX. 

Este é um filme sobre o amadurecimento feminino, regado de ação mas com o tom descontraído que nos leva a deslizar pelas duas horas de narração sem qualquer problema. Enquanto assistimos à revolução de Enola contra as vontades dos dois irmãos mais velhos, precisamos de a ver decidir entre a sua missão de encontrar a mãe, ou ajudar aquele que pode ser um possível interesse amoroso, Viscounde Lord Tewksbury.

Enola é uma lutadora (em cenas mais do que suficientes, sustemos a respiração), mas mais do que isso, este filme traz-nos uma série de dilemas morais, entre aquilo que Enola deve e quer fazer. Uma das questões que mais vezes me passou pela cabeça foi a de "mulher fatal". Sabem? Aquele termo, para descrever uma mulher que se torna o calcanhar de aquiles de um homem, e que tão bem é barrado nas torradas de Hollywood?

Aqui acontece o oposto (e na minha humilde opinião, muito mais realista), em que, esta jovem mulher, gere o dilema de deixar de lado o seu objetivo, para ajudar um homem. E Enola mantém-se forte, de cada vez que nos achamos a escorregar para a ideia de romance, ela acorda-nos (falando diretamente para a câmara, como aliás se torna recorrente ao longo do filme). 

E claro, temos o nosso detetive de sempre, a fazer um papel raramente seu. Sherlock entra no filme como parte essencial de uma narrativa, onde é apenas um personagem secundário. Muito diferente do calculista e frio detetive de Sir.Boyle, este desliza no tom e até se ri, no final do filme.

Vale lembrar, que este não é um filme sobre Sherlock Holmes, mas sim inspirado nos livros de Nancy Springe. Não pensem encontrar aqui uma versão muito fiel de Sherlock, aliás eu nunca tive essa expectativa, já pelo titulo do filme, é viável que tal não aconteça. Não. Este filme, é uma brilhante forma de dar a conhecer ao mundo, mulheres em filmes de ação. Enola tornou-se, na minha opinião, um filme que qualquer jovem devia ver. 

Com um final feliz, livre, leve e solto, Enola acaba sozinha, mas a transbordar de orgulho, de si mesma, com a certeza de que passou a perna a Sherlock, que deixou Mycroft para trás, deu cabo de um assassino contratado, e conseguiu dizer que não e que sim, ao amor. 

Haaa! Fica aqui também o meu apreço pela banda sonora e guarda roupa! Excelentes!





A falácia do "hard work" e do "se fulano consegue, tu também consegues" mind set

setembro 24, 2020

 Sabem quando começam a ter conversas convosco próprios? Quando ficam tão incomodados com certa fala ou atitude, que até têm comichão? Estou nesse ponto, até pensei em fazer um episódio de podcast sobre isto, mas infelizmente as condições para gravar, não são as melhores. Por isso, vamos escrever e ler.

Nas ultima década, foi despertado um fenómeno que nos arrastou, a nós, e ás nossas expetativas, para um sitio estranho, escuro e húmido. Cada vez mais jovens, graças às redes sociais, fomos expostos a um aumento exponencial do sucesso dos nossos pares. Enquanto uns, foram abençoadas com a boa genética do algoritmo, e descolando numa corrida astronómica em direção ao sucesso, outros, ficaram cá em baixo, a ver, a sonhar com a sua própria ascensão à terra prometida.

As redes sociais são, ao mesmo tempo responsáveis e por responsabilizar. Geraram estes cultos, estas massas que se aglomeravam em torno de certas personalidades, muitas vezes da nossa idade, ou mesmo mais jovens, e de repente, vemos pessoas iguais a nós, com vidas que nos parecem muito distantes. Jovens milionários. Pessoas comuns, que agora vivem numa bolha. As redes sociais, foram dominadas pelos jovens, e agora os seus impérios multiplicam-se, bem como os seus discursos de "hardwork" e "se eu consigo, tu também".

Não é contra as redes sociais que tenho um problema, aliás, esse tópico passa do ponto, eu quero mesmo, é falar destas mensagens terríveis que nos tem sido passadas. 

Imaginem uma personalidade como a Kylie Jenner, bilionário (ou não), algumas das coisas que podemos ler sobre ela, é o quanto ela gosta do seu trabalho. Aliás, esqueçam a Kylie, vamos aplicar isto a todos os empresários, e focar-nos na camada jovem, já que é por essas, que muitas vezes estabelecemos padrões de comparação "ele/a já tem 20 anos e uma casa, eu ainda nem tirei a carta de condução".

O selfmade, o hardwork... bom, é verdade que trabalhar, trabalhar muito, gera sempre alguma coisa, mas não existem aqui outros fatores, que importam? Nomeadamente as circunstancias em que nos encontramos?

É praticamente impossível, não nos sentirmos estranhos, quando alguém da nossa idade têm um império e nós, estamos a tentar decidir se vale a pena gastar dinheiro num bilhete de cinema. Não nos parece natural, mas a verdade é que, por ser uma realidade à qual temos um acesso tão fácil, começamos a achar que se passa alguma coisa de errado. Porque nos sentimos atraídos por aquilo, e começamos a seguir aquilo e quando damos por nós, aquela realidade é muito proeminente na nossa vida digital. 

Mas vamos passar para o plano real certo? Vemos aquele "hardwork" todo, e pensamos "não estou a fazer o suficiente". Bom, não é necessariamente isso, que está a acontecer. Estamos todos a lutar por alguma coisa, T-O-D-O-S, sem exceção. Alguns de nós, produtos das suas circunstancias, vão mais longe. E se calhar, agora, alguns de vocês concordam comigo, mas ainda estão de pé atrás. Vou dar-vos um exemplo, do qual tento lembrar-me várias vezes, para visualizar a situação, para perceber como, ainda assim, as pessoas no ocidentes, não estão tão longe como pensam.

Vou pegar agora no caso de Jeffrey Star (deixar a Kylie em paz um bocado). Já repararam no discurso dele? Do "self-made"? Muito giro, muito fofo, muito tudo. Também é extremamente tóxico, porque faz parecer que, pura e simplesmente, só não enriquece, e tem sucesso, quem não quer. Que ele, trabalhou tanto, que merece aquilo que tem. De facto, não duvido que trabalhe muito.

Mas o Jeffrey, se esquece-se de uma coisa. Das suas circunstancias. Que sim, eu sei que foram horríveis, que sofreu e teve uma vida dificil, até certa instancia, mas e depois? Ele nasceu num país de economia relativamente livre. A dada altura, as coisas começaram a resultar para ele. O gene do algoritmo dele bateu no teto. As redes sociais, permitiram que se alimenta-se da sua persona. Em algumas partes do mundo, essa possibilidade nem sequer existe.

O que eu me esforço por ouvir, quando oiço um milionário falar do seu sucesso, do seu hardwork; são as pessoas, do outro lado mundo, que trabalham horas a fio, em condições miseráveis e que provavelmente, nunca vão ter a sorte, de ser envoltas em circunstancias boas o suficientes, para saírem daquele patamar de, quase escravatura. As pessoas, fechadas em fábricas, a fazer embalagens, roupas, maquilhagens, durante horas a fio, a receber, muitas vezes, nem um dólar, por dia. As pessoas, que alimentam o selfmade dos jovens milionários (e dos outros também). E essas, essas são pessoas trabalhadoras, ou não? Não trabalham mais do que o Jeffrey? Do que a Kylie? Do que o Amancio Ortega?

Essas pessoas, são também produto das suas circunstancias, menos abundantes. Então, não, não é toda a gente que consegue aquilo que personalidades de culto conseguem. Uns, mais do outros, tem menos sorte (sim, a sorte existe), e isso não faz de ninguém, menos trabalhador. A verdade é que, estas vedetas, constroem à sua volta um castelo de brincar, onde a sua narrativa de "olha de onde vim, e onde estou" faz com que haja uma identificação, planta a esperança e cria expectativa, que inevitavelmente, gera frustração. Porque não, não temos todos o gene do algoritmo, a sociedade não sobreviveria dessa forma. 

Cada um de nós, à sua maneira, produto das suas circunstancias está a fazer o que pode, para ir em frente, naquilo que mais gosta de fazer. E nem sempre dinheiro é sucesso. Uma mansão aos 17 não é sempre uma coisa boa. É óbvio que é engraçado pensar nisso. Eu própria penso nisso, falo sobre isso com os meus amigos. Aliás, bons momentos, aqueles em que, com a testa em cima da mesa na universidade, gemia por uma vida mais fácil, "oh Deus, a tua filha está preparada para o euromilhões". 

Mas sabem que mais? Agora, pensando nesses momentos, de eterno desespero, as coisas são bonitas e simples, porque, olhando para trás, eu não trocava isso, por outra coisa. Palavra de pessoas que vive mais no futuro, do que no presente. Aquilo que a vida nos reserva, de determinado momento, para a frente pode ser sonhado, mas invejar tanto o presente de alguém, desdenhado do nosso, isso é preocupante. 

Cada um, consegue aquilo que consegue, com as ferramentas que tem à disposição







Tomem, como exemplo, alguns dos homens e mulheres mais ricos do mundo. Passam o dia a sair e a entrar de reuniões, tem de facto muito trabalho, muitas responsabilidades e não duvido por um segundo, que seja trabalhadores, que tenham lutado pelo seu lugar. Mas depois, aquele "eu não era ninguém, se eu consegui..."

Se ele conseguiu, teve aquilo a que eu chamo, um conjunto absolutamente maravilhoso de circunstâncias. Porque do outro lado do mundo, estão pessoas, a trabalhar muito duro e que provavelmente nunca vão sair do mesmo lugar, porque as condições não são as mesmas. Alguém duvida de que pessoas, enfiadas dentro de fábricas 14 ou 18 horas por dia, não sejam trabalhadores? Há alguma coisa no seu trabalho duro e mal pago que justifique a sua posição social? Há, de facto. O capitalismo. Porque no outro lado do mundo, uma pessoas que talvez considere a sua situação precária, teve acesso a coisas maravilhosas, que lhe deram trabalho, mas o levaram mais longe.

Nós somos produto das nossas condições envolventes. Este padrão pelo qual nos tentamos guiar, e que está amplamente difundido nas redes socais, e que nos faz sentir miser


um jovem influencer, com uma marca gigante, que se filma o dia inteiro a trabalhar, a sair e a entrar de reuniões. Realmente, parece-me cansativo. Mas agora, vamos puxar o fio. Vamos desenrolar este novelo. E as pessoas que fazem com a infraestruta se mova

Lit.eratura

Lit.eratura #1 - O Mercedes azul

setembro 21, 2020

O Mercedes Azul



Visto de cima, aquele momento existia em dois pontos diferentes, quase paralelos. Perdida, no meio de um campo de pasto, Luísa estava deitada. A barriga encolhida apontada para o céu e as pernas esticadas, na mesma direção. Os olhos estavam fechados, atentos, ao som das sinetas das cabras. 

Luísa respirava fundo, e como uma criança, afastava o mais que podia os dedos dos pés. De repente deixava cair as pernas, com força, em direção à erva, verde e alta. 

O movimento não durava mais do que uns segundos, que ela desejava e tentava prolongar. Ás vezes, tentava baixar as pernas mais devagar, outras preferia tentar sentir mais devagar.  O resultado era sempre o mesmo. Aquele alivio, aquela sensação de corte, macio entre os dedos dos pés. Ela desejava poder viver entre os dedos dos seus pés, onde o ar era particularmente bondoso. 

E passava horas, naquela incessante repetição. A erguer as pernas e a atirá-las contra o chão, esticadas como as cordas de uma guitarra, quase em ponto de rutura. Ela sabia que sentia sempre o mesmo, mas as suas tentativas de sentir tudo, de conseguir apanhar as sensações, faziam com que se perdesse. 

Luísa, era uma daquelas pessoas especiais, a quem o toque é mais do que o encostar ou sentir da pele. Ela queria descobrir por onde subia, como é que se transformava numa coisa tão boa.

Ao mesmo tempo que Luísa subia e baixava num baloiço inventado por si, uns metros mais acima, a deslizar numa curva, Catarina escorregava dentro do velho mercedes azul do pai. 

Catarina agarrava o volante com uma certa força, esquecida das mudanças, concentrava-se no alcatrão negro, colocado semanas antes. Ela não podia saber disso, pouco se lembrava daquela estrada, mais do que o caminho, lembrava-se do sol e o sol toldava-lhe as memórias. Sabiam-lhe a bem, mas mal as vias. Se erguesse os olhos, por cima dos óculos de sol, teria a mesma sensação, que a acompanhava em criança, quando vinha passar as férias de verão a casa dos tios. 

Catarina e Luísa eram exatamente iguais. Fisicamente, separava-as uma mancha. Luísa tinha um sinal engraçado no lábios, que Catarina agarrara, quando a viu pela primeira vez. Foi amor à primeira vista. As duas meninas tinham ficado espantadas com a sua forma idêntica. Passavam dias a imitar-se. A aperfeiçoar o ritmo das passadas, a imitar o tom da voz. Tocavam nos dedos, uma da outra, como se fossem um espelho.

Fisicamente, separava-as o sinal de Luísa. Em todas as outras esferas, não podiam estar mais distantes uma da outra. Catarina desfilava no meio de uma Lisboa boémia e Luísa perdia tardes a sentir o ar, entre os dedos dos pés, enquanto cuidava de um rebanho de cabras. 

Luísa ouviu o carro que lhe cortou o vento. Foi mais ou menos, como quase adormecer e ter a sensação de que se está a cair. Catarina também sentia isso, mas tropeçava em pedras de calçada, enquanto que Luísa, temia cair dentro de poços.

As cabras assustaram-se, com o barulho do carro e correram a fugir, para debaixo de uma azinheira. Luísa ergueu-se, descalça e arranjou a saia. Ouviu a chiadeira do carro a travar e de repente, de lá saiu uma mulher, exatamente o oposto daquilo que ela própria parecia. 

Tinha um lenço fino na cabeça, uns óculos escuros e um vestido azul, tão vibrante, que mal se distinguia da cor do carro. A mulher baixou-se, tirou os sapatos e desceu a encosta que a separava de Luísa. Quanto mais a mulher aproximava, e quantas mais camadas ia retirando de cima, mas parecia um reflexo.

Um colar de pérolas caiu, engolido, para sempre pelas ervas verdes, que ronronavam nas pernas de Luísa. O lenço voou, tão alto, que até os pinheiros o perderam de vista. Depois os óculos, negros, deixaram adivinhar a Luísa o seu reflexo. 

As duas mulheres ficaram a olhar-se. Por um momento, nenhuma das duas se viu. Sem o barulho do carro, o vento voltou a fazer rugir as árvores e a sineta das cabras voltou a equilibrar a vida de Luísa. Poisou-lhe um mosquito no braço e ela bateu-lhe com tanta memória no gesto, que o pobre inseto foi dar à terra escura, numa bem aventurada viagem, ao inicio. 

Catarina olhou o gesto da prima e por instinto, um tão primitivo como o ciúme ou o amor, quis repeti-lo. Sorriu. Tinha razão em ter vindo até aqui, ainda restava um pedaço seu, no meio do fim do mundo. Ela tinha perdido tudo, menos a criança que fora um dia. Essa não tinha sido magoada, por ela ou pelos outros. 

Luísa sorriu também. Via os olhos verdes, rasgados da outra e era como enfiar a cabeça dentro de um rio.

-O verão acabou.- Catarina deixou que as palavras se espalhassem, como a água, ao fim de uma tarde de rega.

-Mas está já ali, ao virar da esquina.

Catarina rodeou os braços em torno de Luísa. Haviam dez anos que não se viam. A promessa de um regresso ficou a boiar, no tempo que avançou, sem nunca se mover. Porque tudo leva tempo, e o tempo leva tudo. 

Por alguns segundos, minutos, horas, dias ou meses, talvez anos, elas ficaram ali. Fundiram-se numa mescla de vidas que já não conheciam. Conseguiam sentir-se, mas passava-lhes ao lado aquilo que cada uma carregava. Isso intrigou Catarina. Como é que podia estar ali, a abraçar uma amiga, com quem não falava há dez anos e sentir que ela tinha estado sempre ao seu lado? Como é que podia tocar a pele de alguém, sentir o movimento das suas respirações, debaixo dos seus braços e não saber nada, daquilo que já a tinha comovido? 

Não fosse Luísa, igual a Catarina, e teria sido tão fácil reconhecê-la? Ela queria querer que sim. Com o nariz enterrado no cabelo de Luísa, sentiu que o buraco no estômago se ia enchendo. Numa lenta procissão de retrocesso, a sua dor parecia-lhe agora um anacronismo.  

-Porque é que estás aqui?- A voz de Luísa partiu-lhe o sono.

Afastou-se. Eram exatamente do mesmo tamanho. Supunha que fossem exatamente iguais, pelo menos por fora. Supunha também, que teria sido por isso que nunca mais voltou àquela terra. A semelhança das duas incomodava toda a gente.

-Porque estou triste.- Respondeu-lhe por fim. Afastou-se e olhou em volta. O som das cigarras, as sinetas, o vento, a erva e o vento tocaram-lhe a pele e ela percebeu que tinha vindo ver-se, talvez pela última vez. 

-Podes vir comigo?- Estendeu a mão a Luísa, que de repente percebeu, tudo aquilo que agora as separava.

Catarina era elegante, tinha as unhas pintadas, uma pele clara. Luísa tinha as unhas negras, as mãos envelhecidas, e o seu fato de todos os dias, só era trocado ao domingo. 

-Onde? – Agarrou a mão de Catarina e deixou-se ficar a olhar para as unhas escarlates da prima.

-Até ao pego?

-Isso é longe.

As pernas doíam-lhe. Se adivinhava grandes caminhadas, tentava não sentir o vento com tanta força. 

-No meu carro.

Luísa sorriu. Ela nunca tinha andado de carro. Mas de repente, as sinetas roubaram-lhe o rasgo de felicidade. Se deixasse as cabras sozinha, podia adivinhar uma sova. 

Catarina percebeu o problema antes e de repente, as duas raparigas corriam, cada uma de um lado do rebanho. Havia um palheiro, abandonado mais acima. O vento fustigava-lhes a pele e elas enterravam os pés na terra. As cabras foram entrando, qual destino, numa onda bem comportada. 

-Já andaste de carro?- Catarina abriu a porta do condutor e Luísa negou com a cabeça. Parecia demasiado pequena agora, embora ambas fossem altas, uma parecia agigantar-se sobre a outra. 

-Então porque é que não vens conduzir?- Catarina abriu a porta. 

-Eu não sei conduzir.- Não era tanto um som de vergonha, mas sim uma excitação, misturada com modéstia, que tanto embaraça as mulheres em momentos de decisão.

-Claro que sabes!

Luísa sentou, à frente de um volante muito caramelo. Os seus pés, derreteram na forma natural dos pedais e ela esperou, muito quieta, que Catarina se sentasse ao seu lado. 

O som da porta, a fechar-se, fez com que se endireita-se. 

-Empurra o pé esquerdo, todo para o fundo.- A mão de Catarina fez força no seu joelho e ela deixou que o seu pé se afundasse. 

Riu-se. Havia um padrão engraçado no pedal, que lhe fazia cocegas.

-Agora.- Disse enquanto deixava o travão de mão descair.- Levantas esse pé. Muito devagar.

A força que fazia no joelho de Luísa afrouxou. 

-Agora este pé.- Guiou o pé de Luísa para o pedal direito.- Vai fazer força.

Luísa sentiu a troca de poder, de um pé para o outro e o mercedes azul rugiu, vibrou tão alto que lhe perderam o rasto, e depois cuspiu-as, violentamente para frente.

Catarina puxou o travão de mão. 

Luísa tinha o coração a cavalgar-lhe no peito, louco de fúria por não ter por onde se escapar. 

-Outra vez.

-Não!- Catarina afastou as mãos. O volante parecia ferver-lhe a pele.

Custava-lhe respirar e sentia-se presa, dentro do estômago de uma fera.

-Não faz mal! – Garantiu-lhe Catarina, enquanto dava à chave.

Visto de cima, os dois pontos colidiam-se agora, já não havia nada a separá-los. Já não era preciso dividir a atenção entre uma e outra. Já ninguém estava perdido. 

Elas avançaram calmamente, com um sorriso contido, enquanto de vez em quando, Catarina roubava o volante de Luísa e esta se ria.

Luísa, por momentos, sentia-se a pele no meio dos seus dedos dos pés. Pela primeira vez, desde que começara aquele hábito excêntrico de sentir o vento entre os dedos, sentia que conseguia prolongar a sensação, que se perdia nela. 

Não via aquela rapariga, que era exatamente igual a si, desde que tinha dez anos, no entanto não se sentiu pasma por um segundo, quando a viu deslizar por entre a erva. Ficou lá, parada, como se soubesse, desde a última vez que a vira, que ela regressaria, tal como partira. Calmamente, sem a angustia da despedida, ou a surpresa do regresso. É que, é na mentira da promessa, que se acalmam os terrores dos ignorantes, e elas eram duas crianças, sujeitas às mentiras que as fizeram prometer voltarem a ver-se.

Pararam o carro, num caminho sinuoso que teriam de fazer a pé, até ao pego. Bateram as portas com força e foram juntar-se à frente do carro. Luísa olhou para trás, o mercedes azul parecia a olhá-las, uns olhos redondos e sérios. 

Caminharam em silêncio. A saia cinzenta de Luísa resistia às mordidelas das silvas mas, o vestido de cetim azul de Catarina, começou a ceder. Pedacinhos de neve azul, que haveriam de se perder nas profundezas daquelas floresta, até muito depois de nenhuma delas existir.

Ouviram o som da água, e numa coordenada dança, escorregaram pelas pedras lisas, até se sentarem no topo daquele poço gigante. A água estava clara, e a cascata, ao fundo, desenhava círculos que lhes chegavam aos ouvidos. Ficaram ali, a balançar as pernas, para fora do penhasco. 

Catarina riu-se, num sussurro de desdenho. Havia uma animosidade no som, que fez com que Luísa se encolhesse. Lembrou-se das palavras dela “Porque estou triste”

-O tempo é esquisito. É como se nunca tivesse saído daqui.- A voz de Catarina esticou-se, até quase tocar na água. Depois voltou para cima.

-Se calhar nunca saíste.

Luísa sabia que não podia acompanhá-la. Separava-as uma tempestade de sorte, que empurrou o irmão do seu pai em direção ao sul, e puxou o pai de Luísa, que ficou a ver, enquanto o irmão se movia, para trás de onde se punha o sol.

Para um partir, o outro teria de ficar. Ninguém salta de um penhasco, sabendo-se sozinho. Deixa-se sempre alguma coisa.

-Tens razão.- Disse Catarina.- Foi por isso que voltei. Enterrei partes de mim em vários lugares. Quando cheguei ao fim da linha, fui voltando para trás, fui tentando encontrar aquilo que tinha semeado, mas já estava tudo morto. Percebo agora, que só aqui, é que alguma coisa cresceu.

A tristeza movia-se atrás delas. Era escura e rastejava por entre as pedras, parecia-se com uma inundação, latejante e lamacenta, que iria começar a incomodá-las em breve. 

Luísa não sabia muito sobre a tristeza, ou se sabia, não lhe dava nome. Mas Catarina, parecia ter mergulhado tão profundamente na sua, que falava dela (e com ela), como se a intimidade da dor, as tivesse tornado confidentes.

-Não me vais dizer porque é que estás triste?- Se Luísa soubesse, podia dar-lhe conselhos. Conselhos pobres talvez, mas os que tinha para oferecer.

Catarina brincou com um anel enorme, entre os dedos das mãos e por momentos, parecia afogar-se dentro do diamante solitário. Ela tocava no objeto com uma certa raiva, até aquele presente estava envenenado. Até aquela joia desamparada, era um lembrete da sua própria solidão. 

-Porque me perdi.- Sussurrou.- E à bocado, quando te vi, foi a primeira vez, em muito tempo, que senti que existia. 

Catarina achava-se perdida. Tinha saído de casa, às portas de Benfica, de madrugada. Mais ou menos como agora, mas numa escala completamente diferente, a tristeza que a acompanhava, começou a sufocá-la. No quarto, sozinha, sentiu-se afogar. Ela entrou por debaixo da porta, pelas ranhuras das janelas, a dada altura ficou tão alta, que Catarina precisou de esticar o pescoço para cima, a fim de se manter à superfície. 

Agora, ali, havia mais espaço, ela demoraria a encher aquele copo. 

-Não te perdeste, se soubeste vir aqui dar, ao fim de dez anos.- Luísa fez-lhe uma festa nas costas, como fazia aos seus gatos.

Catarina sorriu.

-Tens razão. Palmilhei muito mundo, mas parece que os meus pés continuam aqui, presos.

O silêncio, comeu aquilo que crescia entre elas. Luísa sabia que Catarina era casada, embora não tivesse sido convidada para o casamento. Ela tinha noivado um homem novo, com pinta de vilão, saído de um conto do Eça. Com um daqueles bigodes ridículos, frases feitas, engolidas e cuspidas de gazetas intelectuais. Passava o dia a saltar de paço em paço, com um sorriso tão afiado, que cortava a mais frágil das córneas. 

Luísa tinha ficado magoada, por não ter sido convidada mas, rapidamente a mãe lhe fez ver, o favor que a prima lhe fizera, em não a convidar. Afinal, o que faria uma guardadora de cabras, num casório de classe, na capital?

Catariana odiava o marido, mas odiava-se a si, ainda mais, do que ao prepotente de bigode espetadinho. Ela tinha sido engolida, por ela mesma. Comera cada coisa que adorava em si, e que a fazia diferente. Tinha-se tornado uma sombra, anafada, de si própria. Aquelas pessoas, aqueles elogios, aquelas casas e aqueles carros. Os domingos em frente ao mar, o estalar das ondas, nada disso a satisfazia e foi de repente, que se encontrou à beira da relva, virada para o mar.

Catarina deslizou, pelas janelas duplas, da sua casa de fim de semana, perto da boca do inferno. Foi caminhando, vagarosamente. Os pés enterravam-se na relva molhada. O mar via-a, e temia por ela. Não eram as suas ondas que era perigosas, era tudo aquilo que se erguia atrás dela. 

A casa, agigantava-se sobre ela, como uma vaga tão poderosa, como as ondas do mar. Ela sorriu. O sol rasgou as nuvens, laranja, tão intenso que se tornou preto e ela arrepiou-se. Estava tão vazia. Aquela tristeza que carregava em si, era igual à maré. Enchia e subia ao sabor das suas luas. Quando estava com ela, pelo menos sentia, mas quando ficava rasa, o sabor da miséria empapava-se-lhe na língua. 

As lágrimas molharam-lhe as bochecha, salgadas. Era por aí que se escapava a sua tristeza. Lágrimas negras que a deixavam vazia, que se iam unir ao mar. O céu estava escuro, além daquele rasgo de luz, que tantas vezes se vê na marginal, em dias de tempestade. 

Naquele momento, o mar, esse que sempre existiu, esse que sempre prevaleceu, muito antes de Moisés o dividir, pressentiu-se ser batizado, pelas lágrimas salgadas de Catarina, que o faziam, naquele momento, encolher-se. O mar sentia-se agora rio. 

E Catarina quase o fez, de pés juntos. Quase deixou que o ar, aquele mesmo ar que fazia Luísa regalar-se de cócegas, fosse a última e a primeira coisa que sentisse, quando se deixasse encher de lágrimas. Quando, num movimento natural, o mar a começasse a chorar para dentro.

Agora, sentada ao lado de si mesma, olhava para Luísa. Os seus pés estavam mais perto da água do rio, do que da água salgada naquele dia. Mas ela não sentiu nada. Olhou para o lado, e viu, que pela ponta dos seus dedos, se lhes escapava a tristeza, tal e qual como naquele dia, parada diante da boca do inferno. Ela viu, como caiu e se espalhou na água, como a deixou suja por uns segundos, viu como mais e mais se lhe esvaia do corpo, qual carreiro de formigas.

-Olha.- Disse Luísa, afastando os dedos dos pés, tão longe que pareciam uma estrela do mar. Ela começou a balançar as pernas e Catarina seguiu-lhe o exemplo. 

O estomago de ambas vibrou. O vento lambia-lhes a pele, naquele sitio, tão escondido no corpo, que raramente lhe prestamos atenção. Tão precioso e único, como uma criança. E pela primeira vez, em muito tempo, Catarina riu-se. Riu-se, riu-se, riu-se e riu-se. 

O sol punha-se agora, e a gargalhada dela aumentava, conforme a força com que abanava as pernas, na beirada daquele precipício, que agora não parecia morte, mas sim vida. 

E como um espelho, o dedo indicador direito de Luísa, tocou o indicador esquerdo de Catarina. Elas continuaram, a balançar as pernas, a voar mais e mais alto. O rio foi se afastando, e elas, pareciam de repente a mesma pessoa. 

Ficaram mais e mais distantes, um ponto de reconciliação ao som da água, até que tudo parou, perto do velho mercedes azul, que as olhava, com a consternação de alguém que tinha sentido e visto, demasiada dor. Como um soldado, que regressa a casa, com o alivio de estar de volta, mas com a certeza de que carrega aos ombros, uma carga que nunca poderá poisar. 



Todos os direito estão reservados e salvaguardados à autora do conto.

livros

1Q84 Haruki Murakami - Opinião

setembro 19, 2020

Eu gosto de livros simples. Passam-me ao lado, livros onde o pretensiosnismo do autor, é mais agudo que o das personagens. Há algo de extraordinário num escritor que consegue, simultaneamente, descrever o complexo de forma natural. Murakami, apresenta-nos um mundo com duas luas e nós não lhe duvidamos da palavra. 


"19Q4 Volume I" empurra-nos para o Japão, onde no ano 1984 somos apresentados a duas personagens. Aomame, uma mulher fatal, no sentido mais lato da palavra (é uma assassina profissional) e Tengo, um professor de matemática e editor/escritor nas horas vagas. Capitulo sim, capitulo não, somos confrontados com estas duas realidades, muito destintas. 
Há medida que o livro avança, estes dois antagonistas vão se aproximando, naquilo que só podemos prever, ser uma colisão fatal.
É estranho começar a ler este livro, porque primeiro: é muito bem escrito, sentimos que estamos dentro do livro desde o primeiro momento e isso é raro. Muito. Já o disse aqui muitas vezes, mas a pior parte de um livro é o começo. Murakami possui o dom de nos familiarizar com tudo, de uma forma tão leve, que nem damos por ela. E segundo: o facto de termos a narração de dois personagens faz-nos constantemente ansiar sempre por um diferente. 
É de louvar aos céus, a narração do ponto de vista de um homem e de uma mulher, ser escrita pela mesma pessoas e não darmos por um pingo de descriminação. A história leva-nos pelos pormenores mais sórdidos do ser humano, sobre o poder e a crueldade de matar outro igual. Sobre quão longe, vai a sede de controlo e poder pelo outro. 
Este livro não é só sobre o Japão, ou sobre a vida de Tengo ou Aomame, é sobre os nós, pessoas, e até onde somos capazes de ir quando perdemos o controlo das situações onde nos encontramos.
Mas é engraçado, como ao inicio pensamos "mas porque raio estamos a ler sobre o professor/escritor e uma assassina?". Não estamos. 
É interessante, como tanto do livro gira em torno da violência contra a mulher. Aomame não mata homens "normais", mata homens que infernizam a vida de mulheres, que as espancam, que as violam, que as fazem querer por termo à própria vida. Tengo, sem saber, acaba por encontrar uma dessas mulheres, jovem e tão calada por fora, como talvez por dentro. Esta jovem parece ser a chave de tudo aquilo que vamos lendo. Sendo isso verdade ou ficção. Porque podem estes dois personagens, que vivem aparentemente no mesmo mundo, estar a caminhar em direção ao mesmo? 
Descobri aquilo que se passava com Tengo e Aomame no ultimo capitulo, percebi como se relacionavam e porque andava eu a ler sobre eles, alternadamente, um no ano de 1984 e outro no ano de 1Q84 e isso só confirmou aquilo que percebi no inicio do livro. Murakami é um génio. 
Este, não é tanto um livro que se pode explicar, nem tão pouco opinar. É um livro que precisa de ser lido, porque nenhum surpresa é tão boa, como a de perceber o jogo o que jogamos, ao longo das páginas deste primeiro volume. 

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