Epifitismo de Leo
abril 10, 2020
"Epifitismo é uma relação de
inquilinismo entre duas plantas,
na qual uma planta vive sobre a
outra, utilizando-a apenas como
apoio e sem dela retirar
nutrientes e sem estabelecer
contato com o solo."
Algures entre Lisboa e o resto do mundo
Ás vezes, enquanto os carros passam, tento fixar a cara das pessoas. Claro que não consigo mais que um borrão de pele e, no geral, toda a gente me parece ter o cabelo castanho. Por uns segundos, fecho os olhos e imagino que estou dentro de um dos carros. Por momentos sou eu que tenho a cara apoiada na mão e o nariz esmagado contra o vidro embaciado. Os olhos mortos na paisagem tremida, que os separadores da autoestrada nos deixam antever de vez em quando, nunca o suficiente, mas sempre tanto que nos faça tentar ver mais da próxima vez.
Depois abro os olhos e volto a estar do lado da vida que está parado. Volto a vê-los como pessoas da cidade, com apartamentos brancos e carros pretos. Penso nas outras raparigas da minha idade, sentadas no banco de trás a olhar para a paisagem feia.
Nas chaminés cinza que cospem fumo castanho, na linha do comboio que desliza aos solavancos entre uma fábrica de cerveja e a zona industrial.
Aqui chove todos os dias, mesmo quando não está a chover, está a chover. Estou sempre a limpar as lágrimas das janelas ferrugentas.
Desisto de tentar ver alguém e baixo a escotilha do telhado. A esfregona espeta-se na pele fina debaixo do meu braço e salto do bidé para o chão. Olho a axila ao espelho e adivinho uma nódoa negra.
Com a esfregona debaixo do braço e o balde na mão, baixo a cabeça para sair da minúscula casa de banho.
Olho para as paredes à procura de uma barata que possa esmagar com um chinelo e quando não vejo nada ajeito as pontas do édredon. Saio e sopro para cima do número 15 espetado na madeira velha da porta.
O corredor está escuro e húmido e a fita-cola que colámos no vidro depois de o terem partido começou a descolar.
-A alcatifa das escadas precisa de ser aspirada.- A D. Branca diz-me, enquanto passa com um monte de toalhas para cima.
Olho para o infinito tapete verde que veda o hotel e penso que o melhor mesmo, era ser trocado. Não me atrevo a dizer nada e guardo o balde e a esfregona dentro de um armário.
São quatro da tarde de um domingo chuvoso e não há objetivo nenhum em aspirar a alcatifa verde agora.
-Podes levar duas cervejas aos tipos que estão no café?- A minha mãe mete a cabeça de fora do escritório minúsculo debaixo das escadas e aceno.
Enfio os chinelos no dedo e passo pelo estreito corredor que dá ao balcão do café.
-Boa tarde.- Murmuro antes de abrir a arca frigorifica. Só temos Sagres. Eles devem saber, aparecem aqui no último fim de semana de cada mês.
-Um e trinta por favor.
Um deles, o de barba, procura as moedas no bolso e outro olha para mim. Nunca me respondem quando lhes digo boa tarde.
-Que idade tens?
Mentalmente começo a tirar nota das suas feições. O queixo quadrado, os olhos côvados e olheiras enormes.
-Porquê?- A minha mão continua estendida enquanto o barbudo continua a contar dinheiro e a atira-lo para a minha palma suada.
-Pareces muito nova para poder trabalhar aqui.- Tem olhos azuis desconfiados.
-É da inspeção?- Pelo peso do dinheiro tenho a certeza de que falta. Desço o olhar para confirmar que, de facto, colocou moedas pretas para me tentar confundir.
-Faltam vinte cêntimos.- Os olhos dele abrem num esgar.
-Tens mais?- Pergunta ao amigo.
O dos olhos azuis mete-me uma moeda de vinte cêntimos na mão e depois vira-se para o colega novamente, esquecido da pergunta que lhe fiz.
Abro a caixa registadora e depois de a fechar coloco a chave no bolso das calças. Viro-me para sair mas, o arrastar das cadeiras para-me.
-Podes deixar o comando da televisão?
Viro-me para trás. Nenhum deles está a olhar para mim.
-Não.
Atravesso o túnel estreito e um arrepio faz-me meter as mãos nos bolsos. Tenho saudades do verão, geralmente são os miúdos que me pedem o comando da televisão, e quando vou à arca é para ir buscar gelados.
-Podes aspirar a alcatifa Léo?- A minha mãe volta a espreitar pelo escritório.
-O meu turno já acabou.- Aponto para o relógio na parede.
Quando era miúda eu e os meus irmãos costumávamos adiantar o relógio. Os turnos acabavam mais depressa assim. Claro que, como nos riamos todos da esperteza de puxar os ponteiros para a frente, acabávamos por nos denunciar.
Há medida que eles se foram embora, um de cada vez, adiantar as horas começou a perder a sua graça. Primeiro ainda nos riamos, mas tal como os dias que se iam arrastando, também a nossa gargalhada se foi desvanecendo. Agora parece estupido, esticar as horas só para ficar no mesmo sitio, a fazer o mesmo tipo de nada.
-Então fica para amanhã pode ser?- Ergo-lhe um polegar no ar e subo as escadas novamente.
A alcatifa verde deixa-me enjoada, mas as paredes amarelas não são muito melhores. Quem é que pintaria uma parede de amarelo? De propósito?
O meu quarto é último à esquerda no corredor principal. A confusão de portas e o entrar e sair em que vivi a vida toda, deixou de me atordoar mas, ainda é insuportável não saber quem é que dorme no quarto ao lado do meu.
Abro o número 17 e fecho-o à chave. O meu quarto é único que ainda tem o papel de parede antigo. Flores enjoativas que rastejam pelas paredes, para cima e para baixo numa onda dos anos 50.
Debulho as toalhas que a D.Branca deixou em cima da minha cómoda mas, a única que quero falta-me. Desço as escadas para ir buscar a toalha de banho.
-Boa tarde.
Olho para o escritório da minha mãe, com a porta fechada. Nem vale a pena tentar subir, ele já me viu.
Viro-me para o rapaz de saco ao ombro. Já lá vai o tempo em que eu me ria para os hóspedes. Também já lá vai o tempo em que me achavam engraçada.
-Boa tarde. Posso ajudar?
Ele sorri, a pronuncia carregada do Alentejo.
-Sim, precisava de um quarto.
Pelo canto do olho espreito o parque de estacionamento. Vazio. Deve ter vindo no comboio.
-Só para esta noite?
-Sim.
-Meia pensão ou pensão completa?- Puxo o livro de registos debaixo do balcão e bato com a caneta de tinta azul contra palma da mão.
-Depende, há bons restaurantes por esta zona?
Por dois segundos, faço uma pesquisa rápida a este lugar, estacionado para sempre ao lado de uma auto estrada. Entalado entre a fabrica de cerveja e a industria de cimento. O único restaurante que conheço por aqui é o do Hotel e um Burguer King ao pé da rotunda, onde ninguém mete os pés desde a inauguração.
-Não. Há um Burguer King.- Aponto com a caneta para norte.- Ao pé da rotunda do centro.
-E vocês têm restaurante?- Ele espreita para a minúscula sala de jantar.
-Exato.
Entrega-me o cartão de cidadão e começo a preencher os dados no papel sarapintado de preto. Heitor Claro surge em letras gordinhas no cartão.
Ele poisa o cotovelo no balcão e começa a brincar com um cigarro no balcão.
-Não pode fumar aqui.- Digo-lhe mais em jeito de aviso do que propriamente advertência.
-Eu sei. Tens ali um sinal.
Continuo a preencher os dados. Detesto fazer a parte do pagamento.
-São vinte euros por favor. Quer fatura?- Tiro o bloco de papel químico amarelo de uma gaveta e ele ri-se.
-Não tens computador?
Contemplo responder-lhe, mas o trabalho que me daria carregar uma conversa com ele aos ombros tira-me a vontade.
-Não.
Ele diz-me que quer fatura e copio os números do cartão de cidadão. Peço-lhe a morada. Vive em Lisboa. Mete o cigarro na boca e depois volta a tirá-lo. Os dedos grandes pegam no cigarro, qual guindaste, e coloca-o atrás da orelha.
Paga-me os vinte euros e depois passo-lhe a chave do número quinze. Mete o saco ao ombro novamente e desaparece, engolido pelas paredes amarelas e a alcatifa verde.
-Temos hóspede?- A minha mãe abre a porta do escritório. Eu sabia que ela estava a ouvir. Ergo um polegar para cima, porque sei que ela está a ver.
Abro a janela do meu quarto e meto um pé de fora. Depois o outro. Sento-me no parapeito da janela e os meus pés tocam nas telhas laranja enquanto o sol se põe-se, para lá da corrida negra que desliza por entre as barreiras verdes. Nesta altura do dia, os carros desaparecem e só se veem as luzes. O vermelho para quem vai e o amarelo para quem vem. À noite é mais difícil imaginar as vidas das pessoas e para onde vão, porque são todos o mesmo. Não me consigo projetar no escuro.
Um cão vadio passa pelo quintal e cheira a capoeira das galinhas. Agarro numa pedrinha e atiro-a contra o latão que lhes cobre as cabeças. Tanto elas como o cão despertam.
Oiço o ferrolho da janela ao lado da minha abrir. Ele faz força e, pergunto-me quanto tempo até perceber que tem de empurrar para a frente, antes de girar o mecanismo pré-histórico.
Ele descobre rápido, vejo a ponta do cigarro vermelho a brilhar no escuro. As luzes do passeio à muito que deixaram de funcionar, então só se vê o que luzir. Por isso é que nos partem a janela do corredor tantas vezes. Eu já lhes vi as silhuetas. Primeiro acertam na parede. A tentar. A testar. E depois a partir.
-Posso fumar aqui?- A cabeça dele força-se pela janelinha da casa de banho. Os ombros espremidos contra o rebordo gelado.
-Desde que não partas o bidé.- Volto a olhar em frente. Não pensei que ele viesse espreitar cá fora. Nunca ninguém o faz. Nunca ninguém usa a minúscula casa de banho. Não ficam cá tempo que justifique uma porcaria dessas.
-Como é que te chamas?
A sua voz confunde-se com o fumo branco.
-Eu?
Claro que sou eu. Mas nunca digo o meu nome aos hóspedes. Também nunca lhes pergunto o deles.
-Tu.- Ele suga outro suspiro ao cigarro.
Se lhe disser o meu nome ele vai usá-lo para me chamar. As pessoas usam nomes para isso, mas aqui ele vai usá-lo porque precisa de alguma coisa.
-Léo.- Olho para ele. A minha língua mergulha no espaço entre os meus dentes da frente.
Ele sorri.
-De Leonardo?
Demoro-me mais tempo na cara dele do que gostaria. O nariz aquilino e os maxilares quadrados. É uma cara quase grosseira. Quase.
-Exato.- Digo com ironia, enquanto esfrego os pés contra o tijolo áspero.
Ele não diz mais nada, e puxo as pernas para dentro.
-Até amanhã.
Ergo-lhe um polegar e fecho a janela. Abro a porta que separa o meu quarto da minúscula casa de banho sem janelas e lavo os dentes. Os meus dedos encaracolam-se no plástico enquanto faço penso. Pergunto-me, pela trigésima vez, se algum dia quererei sair daqui.
Todas os dias, em que me imagino num daqueles carros, numa direção não oposta, mas tão longe daqui, que tudo isto me vai parecer o mesmo, mas ao contrário. Será vou estar dentro de um carro, a olhar para o pequeno hotel de beira de estrada e a pensar em quem lá vive? Nos dias de chuva que nunca passam? Nas nuvens que não levantam e no sol que se recusa a vir brilhar neste pedaço de terra acinzentado? Porque até o sol é elitista.
Cuspo a pasta de dentes e puxo o fio que desliga a luz. Ás apalpadelas sinto o colchão e deito-me. Os lençóis arranham-me a pele fria e tapo a cabeça. Bafejo algumas vezes, só o suficiente até a minha respiração abrandar por conta própria.
Arregaço as mangas da camisa azul desbotada e, aperto o lenço na cabeça enquanto viro os ovos na frigideira. Como nunca há muitos hóspedes não faz sentido termos comida a rodos.
Sento-me a comer e desvio os olhos para o programa da manhã. A minha mãe ainda não se levantou e a D.Branca só vem fazer o turno da tarde. A hora do pequeno almoço acaba ás dez.
Gostava que os meus olhos não se desviassem tantas vezes para as escadas. Tento dizer a mim mesma que estou à espera da minha mãe, ou que quero só saber se preciso de cozinhar para alguém. Agora que já tirei o avental não me apetece voltar a colocá-lo.
Meto outra garfada de ovos à boca e viro a atenção para a televisão. Uma plateia de gente bate palmas. O apresentador fala com algumas que tentam mandar o seu amor através do ecrã.
-Cheira bem. Ainda posso tomar o pequeno almoço?
Viro-me para trás e ele está a olhar para mim. Tem uma camisola ás riscas e umas calças de ganga vestidas. Olho para o relógio. 10:08. Suspiro e levanto-me.
-Alguma coisa em especial?
-Torradas com ovos mexidos e café por favor.
Ele senta-se na mesa pequena perto da cozinha. Levanto o meu prato e levo-o para o lava-loiças. Faço as coisas metodicamente. O meu pai costumava queixar-se da minha lentidão, como se estivesse sempre a testar o limite da paciência das pessoas. Não estava. Há medida que fui crescendo os meus movimento foram-se tornando mais metódicos, mais retos, menos vivazes.
Poiso-lhe a comida à mesa e tiro avental.
-Vives aqui.- Os olhos dele não deixam a comida e ele leva uma garfada à boca.
Ele não me perguntou, o que faz sentido porque me viu ontem à janela.
-Sim.- Dobro o avental e vou até à cozinha.
Guardo-o numa gaveta e começo a lavar a loiça. De onde ele está sentado consegue ver-me. Espreitar para dentro se quiser.
-O que é que fazes para te divertir por aqui?
Sinto a água na borracha das luvas cor de rosa. O que é que faço para me divertir? Olho para a rua como se fosse um cinema. Mas não qualquer rua, precisa de ser longe o suficiente para a realidade não me destruir o sonho.
-Vejo filmes.
-A sério? Reparei que não há wi-fi.
Um caracol castanho cai, obstinadamente para o meio da sua testa.
-Não temos wi-fi.
-Então como é que vês filmes?
O sorriso dele não desaparece enquanto bebe um gole do café.
-Tenho DVD´s.
Baixo-me para apanhar o esfregão e quando me levanto, os olhos dele estão colados à televisão. Engulo em seco. Não sei como me sentir em relação a isto, nunca falo com clientes, e a sensação de ter alguém a falar comigo sobre mim é estranha.
-Léo podes ir aspirar a alcatifa?- A minha mãe espreita pela ombreira da porta da cozinha.
-Sim.
Ela sai e fico a olhar para as manchas rosa, escondidas pela espuma branca do detergente no fundo do lava-loiças. A borracha come-me a ponta do dedo quando a esfrego contra o metal, agora quente pela água.
-Onde compras esses DVD´s?
Ergo os olhos e tiro a mão da água.
-Há uns chineses no fundo da rua. Eles sacam-me os filmes e séries da net e depois vendem-mos.
Desta vez ele não sorri. Faz um trejeito com os lábios e foca a atenção no apresentador de televisão.
Enquanto aspiro a alcatifa verde, ele vai até ao balcão. Não o vejo bem, mas a minha mãe está a falar com ele, enquanto lhe devolve a chave e ela a guarda atrás do balcão. Há sorrisos trocados, e por um segundo sinto-me estranha. Ele mete o saco ao ombro e sai. Vejo a campainha a mexer-se, mas não a oiço. O barulho do aspirador abafa-me o pensamento e foco-me numa mancha amarela que não vai sair, por muito que a escove.
Nunca ninguém aparece à hora do almoço, por isso sou só eu e a minha mãe. Ela serve uma porção de arroz e eu tiro um bifinho da panela. As noticias, cantam-nos ao ouvido resultados de jogos de futebol que nenhuma de nós nunca viu.
-Vais fazer alguma coisa à tarde?
É quarta feira, a minha tarde de folga.
-Não.
Ela continua a mastigar e eu continuo à espera que ela me peça para limpar alguma coisa.
-Podias ir dar uma volta.- Os meus olhos encontram os dela.- Se quiseres claro.
Sorrio um bocadinho e poiso o copo na mesa.
-E ir onde?
Ela parece surpreendida. Provavelmente achou que eu andava ansiosa por uma oportunidade para sair daqui. A verdade é que não há nenhum sitio onde eu queira ir, nem ninguém com quem ir. Para ir sozinha a alguma lado, prefiro a minha companhia aqui.
-Não queres ir a Lisboa? Podias voltar no comboio das oito.
Não me lembro da ultima vez que fui a Lisboa, talvez numa visita de estudo antes de toda a gente se ter ido embora.
-Acho que vou ver um filme.
Nenhuma de nós diz mais nada. De repente, é como se o pequeno preludio em que falámos sobre isto, se tivesse evaporado e as coisas tivessem caído nos eixos novamente. Levanto-me para tirar a mesa e coloco os pratos numa pilha ao lado no lava-loiças. Agarro na toalha da mesa e vou à rua pela porta das traseiras.
Sacudo as migalhas para o terraço e olho para as galinhas a raspar na rede.
Baixo o ecrã do leitor de DVD´s e olho lá para fora. O sol está a pôr-se e o céu sucumbe ao laranja e cor de rosa. Os riscos dos aviões cruzam-se e vejo um a avançar lentamente, enquanto trepo pela janela e me sento no telhada. Sempre achei os aviões mais complexos que os carros. Consigo fixar-me neles mais tempo, mas consigo imaginar-me menos dentro deles.
Ás vezes, sigo-os até começar a fazer jogo de resistência comigo mesma. Consigo olhar para o outro lado e encontrar o avião outra vez? Quando deixo de os ver, também deixo de ver tudo aquilo em que pensei enquanto olhei para eles. Imagino as pessoas, sentadas à espera de ir para as suas casas. A lutar pelo seu espaço no aeroporto, a falar ao telemóvel. A falar línguas que só percebo com legendas. Esses países distantes, as ruas, os supermercados. Vidas individuais que se perdem na coletividade... e depois deixo de os ver.
Baixo os olhos para os carros na autoestrada. Está um parado, com os quatro piscas ligados. Ás vezes um impaciente sai do carro, embora seja proibido. Uma vez vi um ser colhido por um camião. Fiquei muito tempo a ver e rebobinar a imagem na minha cabeça. Foi tão de repente, a força do ar atirou-o contra o chão e a policia...
-Posso sentar-me aí fora?
Salto no meu lugar e travo o pé numa telha.
-Desculpa não te queria assustar.- Ele estende uma mão, mas não sei porquê. Se tivesse que cair, já estaria lá em baixo. Com ou sem mão estendida.
Ele mete as mãos nas telhas e ergue-se pela estreita janela. Um pé de cada vez, e senta-se.
Pensei que se tivesse ido embora. Só marcou o quarto por uma noite e hoje saiu com o saco.
-Importaste que fume?- Ele abana o cigarro à frente da cara.
Aceno-lhe e volto a concentrar-me nas formigas trabalhadoras que desaparecem dentro do túnel. Oiço-lhe o isqueiro e depois o primeiro e segundo trago. Ele não diz nada, ouve-se o gemido do vento a ser esquartejado ao longe e as arvores a achocalhar. O gerador da fábrica de cerveja corrói o ar com um som branco e sinto-me demasiado observada para descontrair.
-Então Léo porque é que estás aqui fora?
Pela segunda noite consecutiva? Tenho que me rir. O gesto rasga-me as bochechas e sinto um ardor na ponta dos lábios. Pela segunda noite consecutiva? Já lhe perdi as contas. O meu irmão é que me costumava trazer aqui. Subia primeiro e depois puxava-me. Lembro-me da dor debaixo dos braços, enquanto ele me erguia como um peso morto.
-Estou sempre aqui. – Nunca deixei de estar aqui.
-Não falas muito.- Ele inspira o cigarro e depois fecha os olhos com força antes de se libertar do fumo branco.- Nem sequer me perguntaste o meu nome.
Desvio os olhos da monovolume branca que se despacha a desaparecer e concentro-me nele. Os olhos azuis e a pele bronzeada, provavelmente de um trabalho ao ar livre.
-Chamas-te Heitor.
Ele sorri.
-Pois é... dei-te o meu cartão de cidadão.
Nenhum de nós diz mais nada, mas as palavras são viciantes. Mesmo quando não tenho mais nada para lhe dizer, o meu cérebro não para de pensar em coisas que o façam falar. É disto que tenho medo, de começar a falar e nunca mais me calar.
Resigno-me ao desejo de virar o pescoço e deixo de seguir os pontos que se mexem na estrada.
-Porque é que vens aqui para cima?- Pergunta-me enquanto leva o cigarro aos lábios.
-Porque gosto de ver os carros passar.
-Gostas de carros?
As perguntas dele magoam-me. Nunca ninguém me pergunta nada e quanto mais ele me pergunta, mas eu lhe quero responder. Quero dizer-lhe que não gosto propriamente dos carros, é das histórias das pessoas e da carnificina que cometo quando as apago e me coloco no lugar delas.
-Gosto de me imaginar lá.- Aponto para os carros.- A ir viver as vidas deles.
Nunca disse isto a ninguém. Agora que o disse em voz alta, percebo que talvez haja uma razão para isso.
-E porque é que não tentas? Ir viver essas vidas?
Encolho os ombros.
-Não quero.
-Não queres ou não podes?- Sinto o cheiro do tabaco envolver-me.
-Ambas. Há alguma diferença se nenhuma me impede de fazer aquilo que quero?
Ele sorri.
-Bem pensado.
O cheiro do fumo e do silencio vão-se com o sol e vejo-o esmagar o que restou do seu cigarro com o pé. Os dedos dele brincam com uma telha. São grandes e calosos, e ele esfrega-os contra a pedra como que a lixá-los. Gostava de me lembrar dos dedos do meu pai e dos meus irmãos.
-Essa coisa que fazes.- A sua voz perfura a escuridão que começou a descer. A partir de agora é como os aviões. Uma vez ou outra, vou virar a cara e ele deixará de aqui estar. – É um epifitismo.
A palavra-me soa-me a epifania, mas não acho que isto possa ser uma. Acho que ele sorri, mas já só lhe vejo a forma do rosto.
-É uma relação entre duas plantas. Na qual uma vive em cima da outra, mas nunca sem lhe retirar nutrientes. Serve-se dela apenas como apoio, para nunca tocar no solo.- Encosto-me para trás, com as telhas a moldar-me as costas de forma irregular.- Tu vives aqui em cima, a olhar para eles, a sugar-lhes as vidas que se calhar não tem, e em troca não precisas de ir viver.
Ele recosta-se também.
-Então sou um parasita?- Riu-me. O som brota-me dos pulmões e sabe-me bem contra as costelas.
-Não. Nas relações de epifitismo ninguém tira a ninguém. É só existir.
-Existir não é mau.- Encolho os ombros. Agora só o oiço. A cara dele, o corpo dele, deixou tudo de existir.
-Não, não é.
Gostava de lhe tocar agora, porque não me parece que seja real. Porque parece que estou a falar para a noite e que ela me está a responder. É mais fácil quando não vemos as pessoas. É mais fácil só ouvi-las e falar com elas quando não têm forma. Quando a cara não emite expressão e os olhos são difíceis de ver.
-Mas eles também te podem ver.
O meu coração dispara por alguns segundos que se tornam minutos. Sinto-o no topo do estomago e atrás das minhas orelhas. Viro a cara, os olhos nas luzes de travagem dos carros. Eles também me podem ver. Quando volto a abrir os olhos não o oiço, não o vejo, nem sei se ainda aqui está. Mas também não estendo o braço para o comprovar.
2 comentários
Olá, Sara.
ResponderEliminarAchei seu podcast no anchor muito legal. Estou com projeto no anchor, chamado QUASE 1 CAST, e gostaria de trocar experiência sobre a ferramenta. Abraço!
Wesley Saraiva.
Ah! Estou lendo esse posto...
Adorei!!! A tua forma de escrever faz-me lembrar de quando era pequena e descrevia as coisas que via na minha cabeça. Muito bom! ❣
ResponderEliminar